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como o Brasil enxerga quem tem fome

como o Brasil enxerga quem tem fome

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Durante muitos anos a separação entre a miséria e a pobreza radicou na diferença entre a fome e a má alimentação. As grandes campanhas para a erradicação da fome na África, na década de 1970, baseavam-se na racionalização dos processos de produtividade agrícola.

O pressuposto de que o problema residia na baixa produtividade da terra e de que esta poderia ser melhorada com implantação de novas tecnologias não era falso. Contudo, sua aplicação, gerida por organismos internacionais, não rendeu os resultados esperados.

O análogo nacional, Fome Zero, partia de um pressuposto muito mais discutível. Naqueles tempos, que ainda precediam o cinismo instrumental, hoje praticado pelos que antes defendiam a rigorosa abstinência do Estado em relação à economia, a ideia de distribuir dinheiro diretamente à população ressoava como experiência paternalista, populista e assistencialista.

Programas como o Fome Zero ou o Bolsa Família parecem ser bem-sucedidos, mas não pelos fundamentos e justificativas pelos quais são propostos.

Assim como os projetos da FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação) na África eram um fracasso prático baseado em um sucesso conceitual, nossos programas se impuseram como triunfos práticos ainda à procura de boas razões que os justifiquem.

Lembremos que Bolsonaro acusou tais programas de serem uma forma de cooptar pobres e angariar votos.

Lembremos ainda que tais programas tiraram o Brasil do mapa da fome, ao qual regressamos nos últimos quatro anos.

Lembremos finalmente que a população em situação de rua, assediada cotidianamente pela fome, cresceu 31% nos dois últimos anos.

Lembrei disso quando entrevistava o padre Julio Lancellotti, que tem enfrentado o problema da fome como um capítulo mais recente da aporofobia brasileira.

Aporofobia é o termo técnico, proposto pela filósofa Adela Cortina, para definir o horror ao pobre. Ponto de intersecção entre o preconceito de raça, de classe e de gênero, a aporofobia é uma das razões para entender por que em um país onde o agronegócio cresceu 8,36% somente em 2021, nós regredimos no quesito fome.

Uma hipótese simples.

Tanto o Bolsa Família quanto o Fome Zero levaram em consideração, inadvertidamente, a dimensão social do sofrimento envolvido na miséria.

Os programas africanos, baseados em gradientes nutricionais, coeficientes de proteínas, ou na tipagem genética de sementes, envolviam uma forma de intervenção que destituía as populações nativas e seus saberes.

Ou seja, o suposto natural da intervenção implicava que tais populações precisavam de ajuda e que estariam dispostas a aceitá-la passivamente, desde o ponto de vista mais informado e capacitado, dos países desenvolvidos.

Ações deste tipo, que desconsideram a participação dos beneficiados na forma dos benefícios recebidos, jamais deveriam ser consideradas como uma administração de massas famintas.

Essa concepção colonial funciona mais ou menos como a fantasia pós-moderna em torno de zumbis animados pelo consumo, vazios de alma, mecanicamente orientados para a carne de outros humanos. Por trás dela subjaz a ideia de que os pobres estão tão dominados pelo estado de necessidade, que não cabe nenhuma suposição psicológica sobre gostos, estilos e modalidades de consumo nutricional.

Ações deste tipo nunca deveriam ignorar, como nos lembra a sabedoria de Padre Júlio, que tais atos se inserem em uma dialética do reconhecimento.

É pela forma e conteúdo do ato de ajuda que ele constitui uma determinada forma de vida, que sanciona como legítimo um tipo de sofrimento. A forma como se dá é tão importante quando o que se dá, e é ainda mais decisiva para implantar uma teoria da transformação possível.

Em outras palavras, se reconhecemos zumbis é este o tipo de sofrimento que produzimos reciprocamente e é esta a posição na qual fixamos nosso destinatário.

Ao fazer chegar dinheiro, e não apenas víveres e insumos de sobrevivência, o Bolsa Família sancionou uma posição nova para aqueles que viviam na miséria. Eles não tinham apenas que se alimentar, eles tinham que escolher como o fariam. Com pinga, rapadura ou mandioca, em desperdício ou economia, eventualmente até com o redobramento da fome, agora assumida como uma escolha.

Ao oferecer ao destinatário este instante de escolha e governabilidade de sua própria segurança alimentar, há um “a-mais” que nenhum projeto administrativamente calculado pode produzir. Ora, esta indeterminação foi justamente alvo das mais sérias críticas.

Agora sabemos reconhecê-las como um exemplo da aporofobia: pobre não sabe escolher, pobre não sabe votar, pobre tem que ser governado por quem sabe.

Lacan distinguia estes dois momentos da lei do reconhecimento opondo a lei caprichosa e piedosa —que decide quando e como o objeto deve ser entregue— da lei que carrega dentro de si sua própria determinação simbólica. Isso é tão difícil de entender por aquele que está guiado pela compaixão identificatória, quanto pela mentalidade impessoal do gestor de recursos.

Qualquer objeto dado é assim um ato de risco: pode gerar ressentimento daquele que se sente humilhado, ou gratidão por aquele que se sente apoiado. E isso quem decide é quem recebe e não quem dá.

Esse é o risco ignorado de qualquer ato de amor. Isso vale para o bem e para o mal.

Tendo uma parte da mãe, a criança terá sempre a mãe toda consigo. Ela sentirá sua presença e sua potência. Mas se em troca disso tudo o que ela pode fazer é comportar-se de modo conforme e obediente a demanda materna, logo assistiremos a emergência da revolta e da resistência.

Quando se discute o Estado mínimo e a redução de impostos para quem produz, raramente se introduz nessa equação a infantilização e o ódio aos empobrecidos. Vê-se assim que em termos psicanalíticos, a antiga expressão “Estado paternalista” devia ser equiparada com a ideia de um “governo maternalista”.

A imagem do governo maternalista combina com a dos pais de adolescentes que estão dispostos a conceder uma mesada, desde que seja “para fins pacíficos” ou para reproduzir o poder de quem dá, poder que se confunde com o poder de quem tira.

De fato, esta era a grande novidade do Fome Zero, e que se perdeu no Auxílio Brasil e seus congêneres caminhoneiros, gás ou transporte de idosos.

Em outras palavras, quem decide o que é “fome” é o próprio sujeito: fome de futuro, de justiça, de luxo, de alimento, de educação de conhecimento. Fome de palavras e de reconhecimento.

Logo mais teremos que decidir qual fome iremos matar ou quem nos matará de fome.

Nas próximas eleições pergunte-se, com sinceridade, e de preferência escutando aquela música dos Titãs: “você tem fome de quê?”

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